Muitas
pesquisas usam a favela como verdadeiros ratos de laboratórios, pois a usam na
produção do conhecimento. Mas os resultados das pesquisas nunca voltam para
essa população. Então, a favela continua coadjuvante de sua própria história. É
preciso compartilhar os estudos que a academia faz e articulá-los com o
conhecimento vivo, empírico. Nosso desafio é articular esses dois saberes na
luta contra o crack e outras drogas", advertiu o diretor da Central Única
das Favelas (Cufa) Brasil, Preto Zezé, durante o debate de lançamento do
documentário Selva de Pedra - A Fortaleza Noiada, do qual ele também é
diretor e roteirista junto com Edmar Jr. Ele ressaltou ainda que o crack
avançou em todo o Brasil mais rápido que se esperava. E, infelizmente, as
políticas não evoluíram. O encontro foi realizado na quarta-feira (12/9),
durante as comemorações pelos 58 anos da ENSP.
O
documentário apresentado tem a intenção de fazer emergir, com clareza e
profundidade, o fenômeno do consumo do crack na cidade. O filme também fornece
elementos para que a sociedade e o poder público possam refletir juntos sobre
essa problemática, de modo a preencher um vácuo na instrumentalização das
políticas públicas de prevenção (que envolvem aspectos de saúde, educação,
segurança etc.), tanto por parte do município como do Estado. Seu objetivo é
contribuir para o desenvolvimento de alternativas capazes de promover o
possível enfrentamento competente dessa grave patologia social, bem como
instrumentalizar as fórmulas adequadas para obter a recuperação dos jovens que
se tornaram suas vítimas, dos que ao seu redor de alguma forma foram atingidos
pelos seus impactos na sociedade. O pesquisador da ENSP Paulo Amarante foi o
mediador do debate.
Durante
o debate, Zezé comentou que, para a Cufa e outras instituições interessadas
nessa questão, o crack nunca foi um estudo de caso. “Não é somente um objeto de
pesquisa nosso. Ele tem nome, sobrenome, envolve amigos, filhos, maridos,
esposas, conhecidos e muitas vezes dorme com a gente ou mora conosco. Em nossas
análises, vimos também que a sociedade e as autoridades criaram muitos mitos
sobre essa droga. Um deles afirma que os seus usuários não têm sobrevida longa:
comprovadamente, isso é mentira. Também é inverdade que um usuário de crack não
tenha recuperação. Outro mito está relacionado à quantidade de uso dessa droga.
Muitos associam os usuários a zumbis, mas, na verdade, diversas pessoas fazem
uso apenas nos fins de semana”, desmentiu ele.
De
acordo com o palestrante, é urgente ampliar a discussão do crack na agenda de
saúde, pois, mesmo o Estado não chegando a essa população, muitas pessoas
usaram suas próprias estratégias e largaram o vício. “Também é preciso ter uma
agenda que apoie essas pessoas que, a duras penas, saíram do crack e
conseguiram se reintegrar socialmente. São urgentes e necessárias ações de
suporte, sejam elas por meio de clínicas, dos Centros de Atenção Psicossocial
(Caps) ou igrejas. Não há receita. É preciso beber de todas as experiências
vividas”, disse ele, destacando a atuação do grupo Bandidos do Céus, que faz um
trabalho diferenciado, forte, que envolve a religião para tirar as pessoas do
vício do crack.
Com
base nesse pano de fundo, Preto Zezé afirmou que também é necessário discutir a
legitimidade da produção de conhecimento. “Diversas pesquisas usam a favela
como ratos de laboratório para a produção do conhecimento. A pesquisa, depois
de pronta, é publicada e somente divulgada entre pares na academia. Ela raramente
volta para a população estudada e, portanto, não tem utilização na sociedade.
Com isso, para mim o mais grave, a favela continua coadjuvante de sua própria
história.”
Ele
reconheceu que sua crítica à academia se dá apenas em pontos específicos, pois
também faz uso de seus saberes e avanços tecnológicos quando, por exemplo, toma
um comprimido para dor de cabeça ou gripe. “O que defendo é o acesso ao
conhecimento que liberta. Precisamos compartilhar os estudos que a academia faz
e articulá-los com os conhecimentos empíricos. O nosso desafio é descobrir como
interligar esses saberes para produzir novas estratégias. Precisamos reconhecer
a contribuição que cada um pode dar a esse processo”, considerou Zezé.
O
diretor da ENSP, Antônio Ivo de Carvalho, durante o debate, lembrou que,
anualmente, em especial o período de aniversário da Escola, é aproveitado para
aprofundar seus vínculos com a sociedade e a comunidade do entorno. Dessa
forma, é possível enfrentar os problemas que surgem com a participação da ciência,
cultura e dos diversos segmentos da Escola. Ele afirmou a Zezé que quer estar
junto com ele e a Cufa nessa luta, fazendo uso da ciência e cultura. “Não
estamos nos esforçando pela política ou pela responsabilidade social, mas sim
pela obrigação social que temos de nos integrar e somar para o desenvolvimento
da sociedade”, afirmou. Para encerrar, Antônio Ivo convidou Preto Zezé para dar
aulas na ENSP e compartilhar com a Escola sua experiência e ciência viva.
“Poder tê-lo aqui, nos quadros da ENSP, será uma honra para a Escola.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário